quarta-feira, 23 de março de 2011

O cinema na minha vida - parte 1

Nasci à mais de cinquenta anos numa aldeia, com cinema. A maior parte das cidades de Portugal nessa época não tinha cinema, mas a minha aldeia tinha.

Quando ainda era bébé os meus pais iam ao cinema ao sábado à noite e deixavam-nos sózinhos em casa; pediam à minha avó, que vivia no outro lado da rua, para ir ver o que se passava se nos ouvisse chorar (a mim e à minha irmã): felizmente nunca teve de o fazer.

Ainda em criança serandava pelo cinema, mas o Sr.Lucas e os outros funcionários enxotavam-me dali como se fosse uma mosca: infelizmente era pior que uma varejeira, e eles fartavam-se de me tentar afastar do hall com cartazes de cariz pornográfico, sem sucesso. Pouco depois avançava o muro das traseiras e entrava pela retrete (extremamente mal-cheirosa) e sem ninguém me ver sentava-me na primeira fila da frente com os pés ensopados de mijo. Comentar o cheiro que vinha da entrada do mijadouro ao lado é escusado (e quase insuportável). Infelizmente a maior parte das vezes era detectado e posto lá fora pacificamente. Fartavam-se de dizer que ainda não tinha idade para estar ali, mas não concordava. Não se passava nada em lado nenhum e o cinema era um bálsamo cheio de magia, cowboys, guerras e romances que não compreendia, mas gostava de ver.

Há medida que ia crescendo cada vez me interessava mais pela sétima arte. Era um bom complemento às cowboiadas e livros no fim de semana, e sempre que podia (se o filme me agradasse) ia. Passei a ir também na minha adolescência ao cinema S. Pedro, em Espinho, tentando rentabilizar ao máximo as novidades disponíveis.

Bons tempos, bons filmes e algumas punhetas, na geral mal cheirosa do S. Pedro.

Quando tinha catorze ou quinze anos surgiram nas papelarias três edições novas de revistas interessantes: Homem, mito e magia - Cinema - Revista Geográfica Universal. Depois de falar com o Veríssimo (já trabalhava nos armazens do meu pai) combinamos eu comprar o Homem, mito e magia, e a Geográfica Universal, e ele a revista Cinema. No fim ficamos com o HMM e o Cinema completos. A geográfica Universal já existia à éons e ainda é publicada nos dias que correm: é das revistas mais antigas (se não a mais antiga) que existe no mercado.

Na minha juventude o cinema de Paços entrou em colapso. Problemas estruturais e financeiros, agravados com conflitos entre os dirigentes durante anos, ocasionaram a ruptura dolorosa da sala. Assisti ao caso todo mesmo ao lado nas sucessivas crises em público, e vi como os principais responsáveis sofreram no processo de dissolução da sociedade. O principal (meu vizinho - curiosamente não me lembro do nome dele agora) depois do fecho, parecia um zombie. É como que se tivesse perdido a alma e andasse à deriva no mundo real. Imagino que o mundo dele era o dos filmes e actores, e quando o perdeu ficou deslocado e desorientado na sociedade. Perdeu mesmo (como me confidenciou) o gosto pela vida.

Quando o cinema de Paços morreu o S. Pedro estava em declínio (chegaram mesmo a emprestar o projector de Paços ao S. Pedro): em contrapartida nasceram o de Lamas e o do Casino. Contudo algo não batia como antigamente. O interesse da sociedade pelo cinema tinha-se esbatido, amolicado, empobrecido com a qualidade dos filmes: a idade de ouro do cinema
tinha acabado, e tal como uma mina esgotada, o interesse do público virava-se para outro lado.

Por falar em cinema, a Elizabet Taylor morreu hoje.

Na idade adulta tive um vazio neste capítulo, apenas aberto quando me instalei em Paris. Lá ia muito ao cinema (vivia sózinho) e isso confortava a minha alma e o excesso de tempo disponível. Tive a oportunidade de ver muito e bom cinema até partir para o Congo, onde o de Brazzaville mais parecia uma arena esburacada com bancadas de madeira tosca. Quando regressei de África comecei a ir ao fim de semana para o Porto com o Fernando Augusto, gasolina a meias, fomos ao primeiro Cinanima de Espinho, ao primeiro (ou segundo?) Fantasporto, até cair num marasmo esporádico de interesse, frequentando o Casino de Espinho (o S. Pedro tinha desaparecido para dar lugar a um bloco de apartamentos) ou indo de tempos a tempos a um ou outro shopping ver um filme interessante para desanuviar, com a minha namorada e a minha irmã do meio.
Ponto final nesta primeira fase cinematográfica.