quinta-feira, 25 de março de 2010

Arte no lixo

Um dia destes a minha mulher foi deitar o lixo lá fora e apareceu pouco depois com o modelo de um veleiro todo desconxabado. Perguntou-me se estava interessado nele e ri-me. Tinha os mastros partidos pendurados por restos de cordas, as velas rotas e rasgadas, e a pintura, e o aspecto em geral, era miserável. Estive quase para lhe dizer para o devolver à procedência, mas como sei que por vezes tenho tempos mortos no meu trabalho, disse-lhe para o arrumar a um canto, que logo se veria.
Esqueci completamente o trambolho, até que chegou um dia em que não tinha nada que fazer e ela lembrou-me que o veleiro estava no estaleiro à espera da minha atenção. Peguei nele sem grande convicção, mas como sempre lá engatei na reparação e ganhei-lhe gosto.
Quando ganho gosto a qualquer coisa nada me faz parar, e assim foi com o barco. Demorei algumas semanas de tempo livre e fiz calos em dois dedos a repará-lo, mas valeu a pena. No fim até eu fiquei impressionado com a minha habilidade como mestre artesão.
Pouco depois uma cliente da sapataria reparou no nosso gosto por arte e disse que tinha em casa umas peças que ia deitar ao lixo. Perguntou à minha mulher se estava interessada nelas, e ela, sem saber do que se tratava, disse que sim. Dias depois aparece com quatro peças de madeira Angolanas e disse que ainda tinha mais. Estavam com um aspecto deplorável, mas via-se que eram interessantes (para "pula"): um almofariz, uma Nossa Senhora, um cinzeiro bicéfalo e uma percussão de cana meia podre.
Ao contrário do veleiro (a não ser a percussão) estavam razoáveis, e não parecia difícil pô-las novas.
Quando tive uma oportunidade mandei-me para a frente, e depois de horas de lixadelas e três mãos de verniz, ficaram melhor que novas.
A semana passada apareceu cá em casa a tia da minha mulher, e trouxe uma girafa castiça toda partida que a filha médica tinha trazido de África durante uma comissão. Perguntou se seria possível eu dar-lhe um jeito e assim fiz. Reparei-a, e como bónus fiz-lhe uma base de borracha gravada com estrelas e outros designes oportunistas, para não cair para o lado com um sopro. A borracha foi generosamente oferecida pela tia, portanto não é nada de mais oferecer-lhe um brinde bem merecido.
Agora vamos ver as peças, antes que a tempestade que ronca no horizonte nos atinja.