terça-feira, 13 de julho de 2010

Dádivas dum vizinho 1

Fim de dois meses de trabalho intensivo e obsecado na recuperação e restauração das ofertas do vizinho.
Durante todo este processo senti-me como um pirata a pilhar a casa de um Lorde, com a sua respectiva autorização (e sugestões extra na hora - e que belas sugestões).
É inacreditável aquilo que se deita ao lixo. Como se poderá ver de seguida, uma restauração apurada opera milagres. Depois de litros de cola, dezenas de horas de colagens, digitalizações, encadernamentos com papel grosso de pinturas Espanholas e aguarelas de Abílio Guimarães, apoiadas por forro de linho como reforço, com a limpeza das pochettes na máquina de lixar, a engolir pó com quase duzentos anos, e a apanhar correntes d´ar durante tantas horas que perdi a conta, debaixo do barulho atroador de semelhante locomotiva, dá para pedir tréguas. Trabalho de mineiro, durante seis horas por dia, sete dias da semana.
Como estava a mexer nos livros lembrei-me de deitar uma vista d´olhos aos meus (convencido que estavam muito melhores do que os outros) mas quando lhes peguei fiquei surpreendido; estavam tão sujos como eles. Resultado: tive de limpar os dados, e os meus (efeito borboleta). Contudo não bastava isso (sou um indivíduo descontente com a normalidade) e decidi pintar as folhas na pochete dos mais significativos a aguarela. Também queria de alguma forma acabar com a caixa de aguarelas reforçada que parecia não ter fim (e não consegui).


Na segunda vez que o vizinho apareceu a bater à porta num domingo (como ficou mais ou menos combinado) fomos novamente a casa da mãe no Mercedes, e by God - nunca andei tão rápido na minha vida. A 180 à hora. No entanto parecia que iamos a 100 - 120 quilómetros à hora na via rápida, e ele comentava que tinha receio de ir mais depressa (na generalidade) com medo que alguém saltasse de repente para a faixa mais rápida e ele sem querer o albarroasse e atirasse, seguramente, para fora da estrada.
Desta vez fui com a minha mulher com a intenção de escolher louça e outros objectos caseiros que ele queria despachar. Estava numa de fazer uma limpeza geral e haviam muitos objectos dispensáveis.
"Nice".
A minha, além da curtição da novidade, ia também ajudar-me a carregar os artigos que iamos escolher.

Fizemos dois carregamentos, isto é: enchemos a mala do Mercedes e viemos a minha casa descarregá-la. Descarregamos os livros, as peças de forro e algodão em rolo (parece que o pai dele tinha uma loja de texteis e artigos de costura) e regressamos: carregamos mais uma vez com, por exemplo, a colecção completa do Reader´s Digest desde o 1º nº (10 anos de fascículos), caixas antigas de latão pintadas à mão para guardar as bolachinhas (coisas que a minha mulher adora) um cofre de madeira folheado a prata-latão, não sei, com marfim e pedras brilhantes, do séc:XVIII (como grande parte dos livros nesta remessa) difícil de desalojar visto estarem nas águas-furtadas, e aí a Mira foi muito útil, devido à sua baixa estatura, e ajudou imenso (como sempre). A minha Mira é uma mulher de guerra.
No arrasto veiram caixas cheias de botões sortidos, rolos de linhas de vários tipos, botijas de gaz de isqueiro, jogo de chã, copos pequeninos de beber "dinamite" - uma colecção. Tapparoués, brincos e colares semi-preciosos dos anos sessenta, "o dragão-branco", a maior concha da minha colecção, a quem chamo - todo sorrisos - um trabalho decorativo geométrico composto por pequenas conchas-dinheiro, e vamos dar uma vista de lunetas a algumas peças recuperadas.
Quando estavamos na garagem a carregar e a ver toda uma série de artefactos dispensáveis, como baldes, churrasqueira, tábua de engomar, pastas de postais do pai dele que gostaria de digitalizar (visto serem antigos) reparei numa caixa de cartão grande com a imagem de um piano Yamaha. Na brincadeira perguntei por ele e se também era para ser despachado. A mulher dele disse que estava lá em casa e era para o filho. Ponto final e regressamos com mais uma carga, chegamos a casa, abri a porta da garagem, descarregamos e eles despediram-se e foram embora.
Enquanto a Mira vai para cima preparar o jantar fiquei na garagem a tentar organizar as ofertas, quando de repente ouço chegar um carro e alguém a bater à porta: veio-me um flash à cabeça com a convicção da chegada de mais uma fezada, e quando espreito pela porta vejo o meu a acenar. Abro-a, ele tira do carro o piano e diz que o filho não o quer - portanto é meu. Fico sem palavras, e ele vai-se embora a rir debaixo dos meus agradecimentos mais profundos.
Onde é que já se viu disto? Até os comentários mais sinceros parecem estúpidos perante tal generosidade.


A big smile.