Acabaram as férias e com elas acabou o bem bom. Boa-vida agora só para o ano. Posso no entanto dizer que este verão (mês de Agosto) foi dos melhores dos últimos anos aqui no Norte. Só trabalhei três horas, e mesmo os habituais trabalhos domésticos menosprezei: não pintei as janelas, não reforcei a gaiola dos mandarins com rede, nem contribui para nada, a não ser para a música.
O Sol faz de mim escravo e reconheço ser um filho de Athon: sempre que ele brilha sinto uma vontade irresistível de me prostar diante dele. De preferência de barriga para o ar à beira-mar. A cerveja bebo-a no fim da praia a ler ficção científica na esplanada do Zé da Banana. Li dois e comprei oito, na feira do livro da praia de Espinho.
Quando pensava que me ia safar da rotina de vinte meses não stop a ouvir e a gravar música dos anos 60 e 70, um destes dias no café da esquina encontro um vizinho amigo, e na conversa casual surge a inevitável música (ele já foi músico, mas sem sucesso): confidencia-me então que também ele recebeu música do mesmo indivíduo que ma deu a mim; aí fiquei curioso e com vontade de ouvir o resto do espólio do capitão pirata. Foram mais 98 cd´s de mp3 com mil albuns novos para me atormentarem (e consolarem) as sinapses.
Tenho tantos animais em casa que não posso ir de férias porque não confio em ninguém para tratar deles: 3 gatos, várias galinhas, coelhos e uma gaiola construída à volta do tronco duma laranjeira ao ar livre cheia de mandarins. O instinto ecológico cá em casa é tão forte que não temos coragem para os abandonar. Por outro lado as galinhas e os coelhos são a base da nossa proteína. Não confio no que vem do exterior: não confio no que não vejo crescer e ser alimentado pela minha mulher.
Geralmente nas férias ia quinze dias para o rio Zêzere e quinze dias para o Algarve. De vez em quando alternava com quinze dias no Gerêz e quinze dias no Algarve, ou em Vila Praia de Âncora. Sempre em campismo selvagem. Com o advento dos fogos florestais veio a proibição de fazer fogueiras, e sem fogueira não hà campismo selvagem: sem fogo não hà vida nem diversão em cima duma montanha ou numa praia remota. Hoje em dia as pessoas são carneiros controlados por pastores com telemóvel: à mínima faísca aparece logo um jipe com bombeiros a investigar a chama e a passar uma multa (coisa que nunca me aconteceu, felizmente).
Moro a cinco quilómetros do mar e a minha praia é em Paramos (nome apropriado para parar) e nunca na minha vida me lembro de ter ido tantas vezes à água. O frio Atlântico está mais quente, eventualmente consequência do aquecimento global - garantido.
A meio de Agosto comecei a controlar a subida das marés e entrei numa de animal recolector: objectico - apanhar marisco,como forma de variar a rotina e vergar a espinha. Apanhei mexilhão, búzios, percebas e lapas nas pedras do fundo do esporão. E confesso: foi uma experiência que vou repetir. O ambiente, o céu e o mar foram de uma paz tão profunda, que se não fosse a minha avidez de encher o balde de frutos do mar teria apreciado com êxtase. Mesmo assim tive vislumbres de compensação, câimbras nas pernas e dores nas costas que me regalaram. Sou uma cria de Viriato usada, mas ainda com genica suficiente para curtir o meu imaginário.
Ainda nas férias, num dia de nevoeirada junto ao mar, entrei numa de colher aniz para fazer a minha anizada de Inverno. Reparei então que havia caraçóis aos milhares em cima de tudo que fosse verdura. Isso deu-me logo outra ideia para passar o tempo fora de casa: apanhar caracóis.
Passados uns dias, noutra tarde pouco propícia para fazer praia, disse à mulher para ir buscar o camuflado da tropa, uma camisa de mangas compridas para não me esfolar nas ervas e umas sapatilhas velhas. Estacionei o carro junto ao quartel de máquinas pesadas da tropa e a mulher não me quis acompanhar, por estar muito abafado e as ervas secas e altas a irem arranhar. Ficou a ler "O poder do silêncio" de Castaneda sózinha, até aparecerem tipos de passagem a travar e a quererem meter-se com ela: ficou tão assustada que fechou as portas todas, e amaldiçoou os pataqueiros maxistas que não podem ver uma mulher tranquila em paz. Uma hora depois apareci a resfolegar com o calor, abafado pela camisa, com mais flôr de aniz, uns talos grossos para fazer experiências, e um balde cheio de caracóis fresquinhos.
Dias depois, já mais para o fim do mês, o mar baixou bastante e comecei a ver seixos polidos e belas pedras lavadas pelo mar debaixo dos meus pés. Adoro geologia e não resisti a investigar aquilo que os meus olhos viam entrelinhas. Resultado: durante três dias andei com os pés na água a levar com calhaus nos tornozelos e a recolher pedras. Devo ter carregado algumas dezenas de quilos que trouxe para casa, para proteger vasos dos caracóis, decorar o ambiente e fotografá-las. O resultado, apesar do calor abrasador no pátio, foi mais do que recompensador.
Como se pode ver pelo que escrevi, com um pouco de boa-vontade e imaginação, não só se pode encher o frigorífico com bons petiscos, como praticar ao mesmo tempo um pouco de exercício, coisa que não mata ninguém.